terça-feira, 3 de março de 2015

Simone, a convidada

Simone de Beauvoir
 
"A mulher, como o homem,
é seu corpo, mas seu corpo
não é ela, é outra coisa"
(Simone de Beauvoir)
 
Como convidada, Simone de Beauvoir (Sandrine Kiberlain) entra na história de Violette Leduc (Emmanuelle Devos) no filme Violette de Martin Provost. E, por acaso, se dá o encontro de Violette com o romance de estreia de Beauvoir: L'Invitée (A Convidada - 1943).
 
Violette impressiona-se com a espessura de um livro, um objeto sobre a mesa na casa de um conhecido: "quem é essa Simone de Beauvoir que escreveu um livro tão grande?" E assim como acontecem os melhores encontros com os livros, A Convidada é descoberto pela curiosidade de Violette. A partir desse encontro com esta obra de Beauvoir, a sedutora Violette  forja um encontro com a escritora.
 
Não deixa de ser curiosa a troca de papéis entre escritora e personagem. Enquanto Xavière, no livro, é convidada para entrar na relação de um casal, um homem e uma mulher, Simone é convidada, no filme, para fazer parte de um outro triângulo amoroso: Violette, sua mãe e Simone. Após a leitura do manuscrito de L'Asphyxie (A asfixia), entregue por Violette, Simone aceita entrar na história em que Violette estava presa, como uma criança que não aprendeu salvar sua própria pele.

A asfixia (1946) é lançado pela Gallimard na Coleção Espoir, recém-criada por Albert Camus. O livro é elogiado por Cocteau. Simone lança, também pela Gallimard, O Segundo Sexo (1949), depois Os Mandarins (1954) com o qual ganhou o Prêmio Goncourt.
 
Ao longo do filme, Violette e Simone encontram-se e conversam sobre seus projetos. Simone revela a Violette que estava se dando conta da "montanha que precisava escalar" no livro que estava escrevendo sobre a condição feminina - ela se referia ao O Segundo Sexo.
 
De certo modo, temos essa impressão. Logo no Sumário, percebemos que estamos diante de uma montanha - menos pelo tamanho da obra (dois volumes), mais pela amplitude temática e pela forma de abordagem dos temas.
 
O primeiro volume Fatos e Mitos divide-se em Destino, História, Os Mitos e o segundo volume A experiência vivida, em Formação (Infância, que se inicia com a frase "ninguém nasce mulher: torna-se mulher", A jovem, A iniciação sexual, A lésbica), Situação (A mulher casada, A mãe, A vida social, Prostitutas e cortesãs, Da maturidade à velhice, Situação e caráter da mulher), Justificações (A narcisista, A apaixonada, A mística) e A caminho da libertação (A mulher independente). Entre os dois volumes, a escalada de Beauvoir que escolheu falar sobre a condição feminina a partir do corpo.
 
Começa, então, o percurso de Beauvoir em O Segundo Sexo, a partir do corpo de fêmea que "não constitui um destino imutável para a mulher". Para além do corpo que a faz ser "presa da espécie" e para além da "servidão da fêmea" cuja libertação ocorre na menopausa, está o seu "vir a ser". 

Todavia, para a mulher, a afirmação da individualidade, em termos de transcendência, historicamente mais pesada do que para o homem, pode se tornar mais pesada ainda, sobretudo quando ela nega seu destino biológico. A família, a educação, os costumes e as crenças predeterminam os papéis da mulher na sociedade. 
 
À medida que Simone vai conhecendo a história de Violette, ela a encoraja a escrever sobre sua sexualidade e sobre o aborto feito no 5º mês e meio de gravidez, quando Violette estava casada. Como escritora que "não se escondia atrás das palavras", Violette poderia "prestar um serviço às mulheres" - argumentava com assertividade.
 
Quando Simone incentiva Violette a "contar tudo" da sua história, podemos escutar Beauvoir em Os Mitos (3ª parte do 1º volume) em que analisa as heroínas de Montherlant, D.H. Lawrence, Claudel, Breton e Stendhal. Beauvoir aponta quem fala sobre as mulheres: os homens através das heroínas. A mulher ideal detrás da heroína revelaria ao homem algo  sobre ele, mas a partir dele. Nos mitos as mulheres não se revelam.
 
A escritora que analisa a função dos mitos em O Segundo Sexo convence Violette a escrever sobre sua sexualidade. Pela própria narrativa, ela poderia conquistar um espaço na literatura, inventando-o, em que a mulher fala - e não os homens detrás dos mitos.
 
O livro Ravages (Destroços, de 1955; no filme, Estragos) de Violette Leduc em que ela fala sobre sua sexualidade "como ninguém falou, com poesia, verdade e algo além" é lançado pela Gallimard, com cortes. Mantida, no entanto, a parte do aborto. E, assim, uma mulher pôde falar com sua própria voz sobre aborto na França. Finalmente, Violette alcança seu público com o livro La Bâtarde (A Bastarda - 1964), com prefácio de Simone de Beauvoir.
 
A personagem Violette é uma heroína de "carne e sangue", como ela diz, que faz uma bela travessia para se tornar escritora. Pela palavra tão viva dentro dela, a fantasia, que a aprisionava, a libertara. Simone sabia das possibilidades da força da palavra. E também sabia que a libertação de Violette levaria tempo, como O Segundo Sexo precisaria de tempo para ser compreendido.
 
Em outro filme, Os Belos Dias, de Marion Vernoux, Caroline (Fanny Ardant), uma mulher de 60, aposenta-se como dentista; não como mulher. Uma das coisas que pretende fazer na aposentadoria é ler O Segundo Sexo. Uma leitura tardia? Certamente, não. Nunca é tarde para O Segundo Sexo.
 
***
 
Em 1971, Simone de Beauvoir redigiu o Manifesto das 343, publicado em Le Nouvel Observateur, assinado por ela, Violette Leduc, famosas e anônimas que declararam ter praticado aborto - proibido pelo Código Penal de 1810 e decretado, em 1941, crime contra a segurança do Estado*. 

Após os movimentos pela descriminalização do aborto, a Interrupção Voluntária da Gravidez foi legalizada pela Lei Veil em 17/1/1975 - homenagem a Simone Veil, Ministra da Saúde que defendeu na Assembleia Nacional Francesa o projeto de lei pela legalização do aborto.
 
Nos EUA, a legalização do aborto ocorreu em 22/1/1973, no famoso Case Roe versus Wade, em que a Suprema Corte Americana, por 7 votos a 2, julgou inconstitucional a lei do Texas e, consequentemente, todas as leis estaduais que restringiam, impondo condições, a prática de aborto nos primeiros três meses de gestação.

A Corte fundamentou sua decisão no direito à privacidade (decorrente da Cláusula do Devido Processo Legal da Décima Quarta Emenda  da Constituição) que assegura a autonomia da mulher com relação à decisão sobre a  interrupção da gravidez sem a interferência do Estado. Assim, Roe vs. Wade tornou-se um marco na luta das norte-americanas pela liberdade sobre o próprio corpo.
 
No Brasil, em 12/4/2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 8 votos a 2, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54) proposta, em 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencefálico não é crime. Antes desta decisão, as mulheres precisavam de autorização judicial, que poderia levar alguns meses, para realizar o procedimento.

O Código Penal de 1940, que tipifica o aborto como crime contra a vida, não elencou a gestação de feto com má-formação e sem possibilidade de vida fora do útero entre as exceções em que o aborto não é crime. Foi preciso que o STF reconhecesse que não há conduta criminosa na interrupção da gravidez de feto anencefálico; com impossibilidade de vida.

A sustentação oral foi feita pelo advogado Luís Roberto Barroso, atualmente ministro do STF, que não deixou de se referir à condição feminina que "atravessou muitas gerações em busca de igualdade, em busca do reconhecimento de seus direitos fundamentais" e ao direito da mulher de não ser tratada como "um útero à disposição da sociedade".

Estudos da Fiocruz apontam que a tipificação do aborto no Código Penal Brasileiro não  impede sua prática. O aborto inseguro reconhecido como um problema de saúde pública na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo/1994) é praticado, sobretudo por mulheres de baixa renda. O abortamento é a 5ª causa de morte materna no país.


*O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (História, vol. 1, p. 180-181 - Ed. Nova Fronteira)

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Viviane Campos Moreira é advogada (B. Horizonte)
Publicado em http://balaiodavivi.blogspot.com

Mais: Quem fala por você, mulher?


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